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Arte por howtodraweasy. |
Quando
era mais nova, sempre que precisava preparar uma aventura de RPG, eu escrevia páginas e mais páginas daquilo que
considerava ser uma boa história a se contar. Refinava os mínimos detalhes e
tudo mais. Com o tempo, passei a notar que, muitas vezes, as coisas não saíam
como eu tinha planejado. Isso me pegava de surpresa e causava muita ansiedade –
como eu lidaria com algo fora dos trilhos? Com isso, eu acabava forçando os
jogadores a fazerem aquilo que eu queria.
Nessas horas, dava pra ver o quanto minha preparação era falha. No fim das
contas, a real é que a maneira como eu preparava minhas aventuras era uma
merda.
O modo de se experienciar a narrativa de um RPG é
muito particular e único, totalmente diferente de outras mídias tradicionais,
como cinema, literatura ou até mesmo videogame, pois os envolvidos são
participantes ativos — não consomem passivamente aquilo que lhes é apresentado.
Deixar de usufruir dessa experiência ativa é uma imensa perda daquilo que torna
o jogo especial.
Tendo isso em mente, gostaria de apresentar algumas
linhas gerais que podem ajudar na estruturação e elaboração de aventuras que
desenvolvam uma narrativa mais interessante, explorando o verdadeiro potencial
do RPG — e até mesmo facilitando o trabalho do Mestre durante a preparação de
seus materiais.
Não Prepare Histórias, Prepare Situações
Como já
afirmaram Diogo Nogueira, do Pontos de Experiência, e Justin Alexander, do The Alexandrian, nunca prepare uma trama pré-definida. Já sabemos que sua aventura
de RPG não é uma história — a história só nasce a partir do ato de jogar. Tendo
isso em mente, foque em preparar situações.
Crie algo
que esteja acontecendo, algo interessante o suficiente para que seus jogadores sintam vontade de se engajar. Pode ser
a ascensão de um culto esquisito a um deus morto, a chegada de uma criatura das
estrelas, uma planta gigante que brotou no meio da cidade e leva até as nuvens,
tanto faz. O importante é pensar numa proposta legal.
Essas
situações devem ter vida própria, acontecer independentemente do envolvimento
dos personagens dos jogadores. Entretanto, a interferência do grupo deve ter o
poder de desenrolar os acontecimentos de maneira significativa.
Nesse
quesito, a estrutura do desenrolar dos acontecimentos deve ser aberta o
suficiente para comportar reviravoltas e direcionamentos imprevisíveis.
Elaborar esquemas de aventura focados em circunstâncias e eventos pode ser uma
boa forma de preparar uma aventura.
Pessoalmente,
gosto do seguinte esquema: a elaboração de uma situação-problema; o histórico
ou background da situação; apontamento de localidades relevantes; distribuição de algumas personalidades (NPCs); e levantamento
de possíveis eventos ou complicações.
Para cada
um dos elementos apresentados acima, invento algo interessante com potencial de
engajamento. Geralmente determino três ou quatro localidades, três NPCs e
quantos eventos e complicações eu quiser. Pronto, a preparação da aventura está
feita.
Note que,
por meio dessa abordagem, você não está programando os acontecimentos,
definindo que “primeiro os jogadores farão X, depois acontecerá Y e
terminaremos a aventura com Z”. Não. Você criou elementos e a aventura vai
nascer quando seus jogadores interagirem com eles.
Obviamente,
você pode pensar sobre algumas maneiras pelas quais as situações possivelmente
podem se desenrolar e tudo mais, mas não se prenda a elas. Provavelmente seus
jogadores vão acabar lhe surpreendendo e tomando outros caminhos.
Para
deixar mais clara a estrutura focada em elementos e situações que aqui
proponho, podemos gerar um esquema de aventura como exemplo.
Primeiramente,
pensei que seria legal algo como uma falecida duquesa que retornou à vida como
uma vampira e agora assombra as ruínas de seu antigo castelo. Decidi que o
background dessa situação envolve um pacto de vida eterna que deu errado e
inclui também um ardiloso demônio. Uma floresta misteriosa, uma capela
corrompida para adoração ao diabo e, obviamente, as ruínas do castelo me
parecem localidades legais. Meus NPCs serão a duquesa vampira, o demônio, um
padre aprisionado nas ruínas e uma bruxa que vive entre as árvores. Possíveis
eventos poderiam ser a abordagem de elfos assustados na floresta, um diabrete
da capela tentando possuir um dos personagens, a duquesa invocando crias
sombrias caso descubra uma invasão em seu covil ou talvez até mesmo uma
reviravolta inesperada.
A partir
daí, elaboro um pouco melhor minhas ideias, escrevo um ou mais parágrafos para
cada um desses elementos, incluindo potenciais interações, desafios ou coisa do
tipo. Para falar a verdade, você pode ser ainda mais sucinto e escrever uma ou
duas frases para cada elemento, apenas o suficiente para você se situar melhor.
Esse método é bastante flexível, você pode alterá-lo da maneira que melhor se
adeque ao que você prefere.
Aliás,
acima comentei sobre a elaboração de possíveis desafios. Acho importante comentarmos
sobre esse tópico.
Desafie os Jogadores, Não Suas Fichas
Suponha
que um personagem vá tentar encontrar uma armadilha. A mestra pede um teste. O
jogador rola um dado, soma os modificadores de sua ficha e confere o resultado.
Na prática, ele se valeu apenas da sorte.
Agora
imagine uma situação diferente, na qual a Mestra evita a rolagem de dados e
pergunta: “Certo, onde e como você vai procurar essa armadilha?”. Em seguida, a
partir da descrição do jogador, ela arbitra se ele foi bem-sucedido ou não. Aqui,
o jogador foi desafiado a raciocinar, pensando, de fato, numa maneira de
resolver o problema.
Como RPG
é um jogo que se desenvolve no imaginário compartilhado dos participantes, para
que um elemento seja efetivamente desafiador, ele deve instigar o pensamento e
a resolução de problemas. Fichas são
apenas ferramentas mecânicas. Sua utilização é importante, mas os elementos
narrativos e as descrições são muito mais.
Com isso,
percebemos que um verdadeiro desafio vai além do quão poderosos são os inimigos
enfrentados ou do quão alta é a dificuldade de determinado teste. O desafio
nasce da necessidade de se ir além do esperado, de se lidar com conflitos
dentro da narrativa, e não com números e mecânicas.
Jogadores
gostam de se sentir desafiados. Por isso, leve estas observações em
consideração durante a estruturação de suas aventuras.
Apresente,
exigindo solução ativa, os elementos que você elaborou anteriormente. Priorize
descrições em vez de rolagens de dados. Pense em como a tal armadilha funciona
e em maneiras possíveis de encontrá-la e desarmá-la. Crie conflitos narrativos.
Utilize-se de puzzles, enigmas, combates estratégicos e toda sorte de problemas
a serem resolvidos. Desafie os jogadores, não suas fichas.
Familiarize-se com Elementos Comuns de Ótimas
Aventuras
Existem
vários ótimos autores de módulos de aventura por aí e inúmeros livros com
ideias incríveis. Você também pode encontrar blogs com dicas valiosas —
modéstia à parte, o meu é um deles!
Abaixo,
listo alguns itens que, segundo Joseph Goodman, renomado game designer e autor
de DCC RPG, são elementos comuns de ótimas aventuras:
• Senso
de fantasia: transmita isso por meio dos encontros, descrições e,
principalmente, da magia. O fantástico é o que torna o RPG tão divertido — e
isso precisa transparecer na aventura.
• Atmosfera:
a aventura deve ter uma vibe forte e coesa — seja perigosa, maligna,
perturbadora, etérea ou o que for.
• Sensação
de “ir direto ao ponto”: comece com impacto e vá logo para a ação.
Quanto antes a aventura realmente começar, melhor. Além disso, não perca tempo
com salas vazias, a menos que elas realmente acrescentem algo.
• Um
bom vilão: nem toda aventura precisa de um, mas as melhores geralmente
têm. A aventura também deve estabelecer uma base emocional forte para o vilão —
não basta ele ser só mais um “necromante maligno”.
• Envolvimento
do grupo: equilibre a ação para que todas as classes de personagem
tenham momentos de destaque.
• Monstros
únicos: um monstro inédito que desestabilize os personagens é ótimo. Um
monstro único, criado especificamente para a sua aventura, é ainda melhor.
• Subtramas:
várias coisas podem acontecer ao mesmo tempo, além da situação-problema
principal da sua aventura. Elas podem variar bastante, envolvendo vários
personagens em um drama contínuo, criando mistério ou intriga, e levando a
aventuras futuras em potencial.
• Surpresas
para os jogadores: pode ser uma reviravolta ou uma complicação
inesperada. Estabeleça expectativas nos jogadores, e depois use essas
expectativas contra eles para criar reviravoltas na narrativa.
• Potencial
para continuação: você, a Mestra, deve conseguir continuar os fios
narrativos iniciados nesta aventura e criar novos ganchos para sua campanha a
partir deles.
Conclusão
Certo, com isso, você já conheceu bons parâmetros para a elaboração de uma boa aventura de RPG. E, provavelmente, vai se livrar de um bocado de trabalho desnecessário, como escrever trinta páginas e correr o risco de seus jogadores fazerem algo inesperado que vá contra tudo o que você planejou.
Entretanto,
esse é só o pontapé inicial. Monte suas próprias aventuras, pratique. Leia
alguma coisa de vez em quando, como módulos de aventura legais ou artigos de
RPG interessantes. Mas cuidado: alguns deles vão dizer que você precisa criar
uma ótima história ou coisa do tipo. Não siga os conselhos deles. Suas
aventuras serão, provavelmente, uma merda.
Referências
A Dificuldade nos Jogos de RPG
Depois de uma semana lendo alguns textos sobre criação de aventura, este seu e os mencionados no fim, estou aqui escrevendo uma também. É perceptível em suas aventuras estes elementos, mas sempre me vem uma dúvida lendo elas: Como você utiliza as áreas em uma masmorra? é provável que você tenha um mapa para as masmorras, mas como não colocou nos textos, eu me senti um pouco confuso durante as leituras. Fico imaginando que você coloque as áreas soltas e quem for usar suas aventuras, só preencha o mapa com as suas áreas conforme achar melhor, tô certo?
ResponderExcluirOlha, normalmente eu considero uma masmorra uma seção à parte, um componente especial na criação de uma aventura. Justamente por isso não inclui no artigo acima, acho que seria melhor um artigo só pra falar de masmorras.
ExcluirMas, respondendo sua pergunta, sim, é exatamente como você indicou. Eu preparo as áreas soltas e quem se interessar pelas aventuras constrói o "mapa" conforme achar melhor. Mas, agora que você comentou, acho que arranjar um mapa pras minhas aventuras prontas pode ser algo interessante pros leitores, né? Vou considerar isso nas próximas.
Mas comenta aí, sobre o que você anda escrevendo? Teve alguma ideia legal de aventura?
Acho que com a masmorra junto, a informação será mais estruturada.
ExcluirJuntei algumas informações durante a semana. Pequei a ideia de um jogador sobre um grande Deus Sapo das Tempestades e pensei em um templo nas nuvens onde gigantes cultuam esse deus sapo, e descem de seu templo para sequestrar possíveis sacrifícios (eu já queria usar gigantes). Estou pensando em uma escalada por uma arvore gigante na qual os gigantes descem, estilo a de João e o pé de feijão, mas acho que colocar harpias para atrapalhar os jogadores pode ser bastante perigoso e acabar em TPK.
Por enquanto, estou gostando da ideia e me baseando no "senso de fantasia" que o Goodman diz ser necessário. É isto!
Cara, que coincidência, sabia que na minha campanha atual eu tbm joguei uma aventura estilo joão e o pé de feijão? Mentes brilhantes pensam igual.
ExcluirDá uma olhada nos meus próximos diários de sessão e você vai conferir como rolou na minha mesa.
Ademais, sucesso na tua aventura !!